Cultura Surda: uma perspectiva antropológica
O antropólogo Roberto
da Matta (1981) faz uma interessante caracterização da ideia de cultura: mais
do que um sinônimo de sofisticação, sabedoria, erudição, cultura é a maneira de
viver total de um grupo, sociedade, país ou pessoa:
Cultura é (...) um mapa, um
receituário, um código através do qual as pessoas de um dado grupo pensam, classificam,
estudam e modificam o mundo e a si mesmas. É justamente porque compartilham de
parcelas importantes deste código (a cultura) que um conjunto de indivíduos com
interesses e capacidades distintas e até mesmo opostas, transformam-se num
grupo e podem viver juntos sentindo-se parte de uma mesma totalidade. Podem,
assim, desenvolver relações entre si porque a cultura lhes forneceu normas que
dizem respeito aos modos, mais (ou menos) apropriados de comportamento diante
de certas situações.(...) A verdade é que todas as formas culturais (...) de
uma sociedade são equivalentes e, em geral, aprofundam algum aspecto importante
(...).
Ainda assim, embora este enfoque antropológico
esteja, cada vez mais ganhando força, muitas pessoas desconhecem a existência
de uma cultura Surda e caracterizam os membros desta comunidade como pessoas incapacitadas
ou impedidas de fazer algo. O termo Surdo, com S maiúsculo, se refere aos
membros da comunidade Surda que compartilham valores, normas, tradições,
língua e comportamentos. É uma cultura rica e importante, tão importante quanto
qualquer outra forma cultural dominante.
No Brasil, uma perspectiva inclusiva
vem permeando, nos últimos anos, a Educação. A partir da regulamentação da lei
de Libras (2002), ficou estabelecido que os sistemas de ensino devem organizar
turmas abertas a alunos surdos e ouvintes, disponibilizar serviços de
tradutor/intérprete de Libras/Língua Portuguesa e equipar salas com recursos
multifuncionais onde os surdos possam contar com atendimento educacional e
material didático especializados.
Além disso, a Libras passou a ser disciplina obrigatória em todos os cursos de
formação de professores e de fonoaudiólogos, e foi oficializada a oferta de
cursos de licenciatura e de bacharelado em Libras.
A língua brasileira de sinais é uma representação
da força da cultura Surda, que se manifesta tanto no aspecto político, acima
mencionado, quanto no plano linguístico . A natureza visual da Libras produz um
impacto nas regras de comunicação adotadas. Nas línguas faladas não há
necessidade de contato visual entre que fala e quem ouve e este contato acaba
acontecendo muito pouco. Além disso, os barulhos do ambiente distraem a atenção
dos falantes e desviam seus olhares. Já na língua de sinais as pessoas precisam
de se olhar o tempo todo. E a cada momento a língua de sinais, como qualquer
outra língua, vai se modificando e novos gestos são construídos para
representar novas idéias, inclusive (ao contrário do que alguns ainda pensam) as
abstratas.
A análise do contexto de utilização da língua de
sinais é ainda capaz de aprofundar a caracterização da cultura Surda. Em um
folheto de divulgação sobre a cultura Surda americana, Linda Siple e Barbara Holcomb
(2004) fazem uma comparação entre os valores da sociedade americana dominante e
os valores da cultura Surda. As autoras apontam que o padrão cultural americano
valoriza o individualismo, a privacidade, o isolamento. Quando dois indivíduos
se apresentam eles consideram importante mencionar seu nome e ocupação, o que
serve para enfatizar sua unicidade. Como contraponto, um dos mais importantes
valores da cultura Surda é o coletivismo. Cada Surdo se percebe como membro de
uma trama interconectada. Surdos apreciam muito a companhia de outros Surdos e
sempre procuram companhia. Quando se conhecem, procuram saber de onde a outra
pessoa é e quais amigos Surdos podem ter em comum. Quando um Surdo vai deixar
um ambiente onde se encontram outros Surdos, o processo de despedida pode ser
bastante longo, o que enfatiza que a conexão entre cada membro da
comunidade é valorizada.
Há, enfim, inúmeras as características da cultura
Surda que a distinguem da cultura não Surda dominante. A valorização da cultura
Surda só pode trazer elementos enriquecedores para o debate entre as inúmeras
culturas e sub-culturas (o sub aqui
sem qualquer valor pejorativo) que povoam a sociedade.
Concluo este texto, da mesma forma que o iniciei,
com as sábias palavras de Da Matta (1981):
a verdade é que todas as formas
culturais ou todas as "sub-culturas” de uma sociedade são equivalentes e,
em geral, aprofundam algum aspecto importante que não pode ser esgotado
completamente por uma outra "sub-cultura". Quer dizer, existem
gêneros de cultura que são equivalentes a diferentes modos de sentir, celebrar,
pensar e atuar sobre o mundo e esses gêneros podem estar associados a certos
segmentos sociais. O problema é que sempre que nos aproximamos de alguma forma
de comportamento e de pensamento diferente, tendemos a classificar a diferença
hierarquicamente, que é uma forma de excluí-la. Um outro modo de perceber e
enfrentar a diferença cultural é tomar a diferença como um desvio, deixando de
buscar seu papel numa totalidade.
Assim, sob este enfoque antropológico, a cultura Surda, ainda que alguns
tentem diminuí-la ou ignorá-la, está em posição de igualdade com qualquer outra
forma cultural dominante. O reconhecimento da diversidade cultural é um
poderoso instrumento de compreensão das diferenças entre os homens e pode
favorecer a construção de uma sociedade muito mais harmoniosa, justa e feliz.
Referências
bibliográficas:
DA MATTA, Roberto.
“Você tem cultura?” Jornal da Embratel,
RJ, 1981.
*Acesso em 06/04/2011: professor.ucg.br/SiteDocente/admin/arquivosUpload/14467/material/voce%20tem%20cultura.pdf
DUTRA,
Cláudia P. A Política de Educação Especial na Perspectiva
da Educação Inclusiva e a Educação dos Alunos Surdos. Acesso em 06/04/2011:
http://www.editora-arara-azul.com.br/revista/03/compar3.php
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Lei Nº.
10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais –
LIBRAS e dá outras providências.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Decreto
Nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei Nº 10.436, de 24 de
abril de 2002.
SIPLE, Linda & HOLCOMB, Barbra. NETAC Teacher Tipsheet, NY,
2004.
*Acesso em 06/04/2011:
Olá,
ResponderExcluirSem dúvida a cultura surda é um patrimônio, mas o meu sonho é que o cadinho cultural se funda e sejamos todos parte de um só 'mundo'.
Marcia