quinta-feira, 23 de maio de 2013

Você conhece a Cultura Surda?

Em 2011 cursei a disciplina Libras, agora obrigatória para todas as licenciaturas. Claro que, como não tenho praticado, acabei me esquecendo de quase todos os gestos que aprendi... Mas o que ficou de mais importante foi o contato, através da prof. Betty Andrade, com a cultura Surda. A seguir reproduzo o trabalho que escrevi para esta disciplina sobre cultura surda.


Cultura Surda: uma perspectiva antropológica


            O antropólogo Roberto da Matta (1981) faz uma interessante caracterização da ideia de cultura: mais do que um sinônimo de sofisticação, sabedoria, erudição, cultura é a maneira de viver total de um grupo, sociedade, país ou pessoa:

 Cultura é (...) um mapa, um receituário, um código através do qual as pessoas de um dado grupo pensam, classificam, estudam e modificam o mundo e a si mesmas. É justamente porque compartilham de parcelas importantes deste código (a cultura) que um conjunto de indivíduos com interesses e capacidades distintas e até mesmo opostas, transformam-se num grupo e podem viver juntos sentindo-se parte de uma mesma totalidade. Podem, assim, desenvolver relações entre si porque a cultura lhes forneceu normas que dizem respeito aos modos, mais (ou menos) apropriados de comportamento diante de certas situações.(...) A verdade é que todas as formas culturais (...) de uma sociedade são equivalentes e, em geral, aprofundam algum aspecto importante (...).

Ainda assim, embora este enfoque antropológico esteja, cada vez mais ganhando força, muitas pessoas desconhecem a existência de uma cultura Surda e caracterizam os membros desta comunidade como pessoas incapacitadas ou impedidas de fazer algo. O termo Surdo, com S maiúsculo, se refere aos membros  da comunidade Surda que compartilham valores, normas, tradições, língua e comportamentos. É uma cultura rica e importante, tão importante quanto qualquer outra forma cultural dominante.
No Brasil, uma perspectiva inclusiva vem permeando, nos últimos anos, a Educação. A partir da regulamentação da lei de Libras (2002), ficou estabelecido que os sistemas de ensino devem organizar turmas abertas a alunos surdos e ouvintes, disponibilizar serviços de tradutor/intérprete de Libras/Língua Portuguesa e equipar salas com recursos multifuncionais onde os surdos possam contar com atendimento educacional e material didático especializados. Além disso, a Libras passou a ser disciplina obrigatória em todos os cursos de formação de professores e de fonoaudiólogos, e foi oficializada a oferta de cursos de licenciatura e de bacharelado em Libras.
A língua brasileira de sinais é uma representação da força da cultura Surda, que se manifesta tanto no aspecto político, acima mencionado, quanto no plano linguístico . A natureza visual da Libras produz um impacto nas regras de comunicação adotadas. Nas línguas faladas não há necessidade de contato visual entre que fala e quem ouve e este contato acaba acontecendo muito pouco. Além disso, os barulhos do ambiente distraem a atenção dos falantes e desviam seus olhares. Já na língua de sinais as pessoas precisam de se olhar o tempo todo. E a cada momento a língua de sinais, como qualquer outra língua, vai se modificando e novos gestos são construídos para representar novas idéias, inclusive (ao contrário do que alguns ainda pensam) as abstratas.

A análise do contexto de utilização da língua de sinais é ainda capaz de aprofundar a caracterização da cultura Surda. Em um folheto de divulgação sobre a cultura Surda americana, Linda Siple e Barbara Holcomb (2004) fazem uma comparação entre os valores da sociedade americana dominante e os valores da cultura Surda. As autoras apontam que o padrão cultural americano valoriza o individualismo, a privacidade, o isolamento. Quando dois indivíduos se apresentam eles consideram importante mencionar seu nome e ocupação, o que serve para enfatizar sua unicidade. Como contraponto, um dos mais importantes valores da cultura Surda é o coletivismo. Cada Surdo se percebe como membro de uma trama interconectada. Surdos apreciam muito a companhia de outros Surdos e sempre procuram companhia. Quando se conhecem, procuram saber de onde a outra pessoa é e quais amigos Surdos podem ter em comum. Quando um Surdo vai deixar um ambiente onde se encontram outros Surdos, o processo de despedida pode ser bastante longo, o que enfatiza  que a conexão entre cada membro da comunidade é valorizada.  
Há, enfim, inúmeras as características da cultura Surda que a distinguem da cultura não Surda dominante. A valorização da cultura Surda só pode trazer elementos enriquecedores para o debate entre as inúmeras culturas e sub-culturas (o sub aqui sem qualquer valor pejorativo) que povoam a sociedade.
Concluo este texto, da mesma forma que o iniciei, com as sábias palavras de Da Matta (1981):

 a verdade é que todas as formas culturais ou todas as "sub-culturas” de uma sociedade são equivalentes e, em geral, aprofundam algum aspecto importante que não pode ser esgotado completamente por uma outra "sub-cultura". Quer dizer, existem gêneros de cultura que são equivalentes a diferentes modos de sentir, celebrar, pensar e atuar sobre o mundo e esses gêneros podem estar associados a certos segmentos sociais. O problema é que sempre que nos aproximamos de alguma forma de comportamento e de pensamento diferente, tendemos a classificar a diferença hierarquicamente, que é uma forma de excluí-la. Um outro modo de perceber e enfrentar a diferença cultural é tomar a diferença como um desvio, deixando de buscar seu papel numa totalidade.

Assim, sob este enfoque antropológico, a cultura Surda, ainda que alguns tentem diminuí-la ou ignorá-la, está em posição de igualdade com qualquer outra forma cultural dominante. O reconhecimento da diversidade cultural é um poderoso instrumento de compreensão das diferenças entre os homens e pode favorecer a construção de uma sociedade muito mais harmoniosa, justa e feliz.

Referências bibliográficas:

DA MATTA, Roberto. “Você tem cultura?” Jornal da Embratel, RJ, 1981.

DUTRA, Cláudia P. A Política de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva e a Educação dos Alunos Surdos. Acesso em 06/04/2011: http://www.editora-arara-azul.com.br/revista/03/compar3.php
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Lei Nº. 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS e dá outras providências.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Decreto Nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei Nº 10.436, de 24 de abril de 2002.

SIPLE, Linda & HOLCOMB, Barbra. NETAC Teacher Tipsheet, NY, 2004.
*Acesso em 06/04/2011:

Um comentário:

  1. Olá,
    Sem dúvida a cultura surda é um patrimônio, mas o meu sonho é que o cadinho cultural se funda e sejamos todos parte de um só 'mundo'.
    Marcia

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